Entrevista com a pianista Karin Fernandes

A pianista Karin Fernandes, premiada em diversos concursos e uma das grandes divulgadoras de música contemporânea brasileira, concedeu uma entrevista ao IPB em que ela fala sobre seu início de carreira, suas preferências pianísticas, a relação compositor-intérprete, e planos futuros. Confiram!


Karin Fernandes, acervo da pianista.

Alexandre Dias - Como foi seu início na música? Que memórias você guarda das aulas com as professoras Irene Almeida e Leni Azevedo?

Karin Fernandes - Meu início foi bastante inconstante. Progredi muito rapidamente quando comecei a ter aulas de piano, aos 7 anos, cumprindo um programa de 3 anos de estudo em 3 meses, mas também parei de estudar algumas vezes desde a primeira aula até começar a Graduação em Música, e mesmo depois disso. Cheguei até a desistir de uma bolsa de estudos em Londres, logo após fazer a matrícula.

Fiz muitos concursos de piano desde os 8 anos de idade, ganhei primeiro lugar pela primeira vez aos 10 anos e com isso descobri uma fonte de renda, pois entendi que poderia comprar meus brinquedos se ganhasse concursos. Tinha muita facilidade para aprender, ouvido absoluto, nunca ficava nervosa para tocar, então era muito fácil para mim. Cabeça de criança, ganhar os concursos para comprar brinquedos era minha motivação, e não um começo de carreira, com certeza. E depois, na adolescência, eu encarava participar e ganhar concursos como um trabalho. E um trabalho que me dava algum dinheiro e muitas vezes recitais e concertos com orquestra. Comecei minha carreira como pianista com os recitais e concertos que ganhava nos concursos.

Mas ao longo do meu início ao piano também tive que parar com as aulas algumas vezes porque minha família nem sempre tinha condições de pagar por elas. Além disso eu mesma me cansava das aulas. Eu queria ter autonomia para escolher as peças, não gostava de obedecer a ninguém, então minha relação com as professoras que tive era um pouco complicada, às vezes. Em casa meus pais me chamavam de furacão branco, porque eu era terrível.  Não seria diferente no estudo do piano, era uma aluna muito rebelde, reconheço.

Depois, quando comecei a ter aulas com a Leni Azevedo no conservatório de um colégio onde estudei, fiquei um pouco desanimada por conta do programa do curso, que era muito fraco. Por ser um conservatório e para me formar nele eu teria que cumprir aquele programa, não pude escolher o que queria tocar. Mesmo assim eu estudava outras peças por conta própria, e sei que a Leni não gostava muito disso. Acho que sempre tive um espírito muito crítico e por vezes também bastante rebelde com o que as pessoas queriam determinar para mim, e isso desde a infância até os dias de hoje. Isso me ajudou em muitas situações, mas também me atrapalhou bastante, porque a maioria das pessoas não gosta de ser desafiada ou questionada e acaba preterindo quem se rebela. Mas com bastante frequência não me importo com isso. Sempre defendi a importância de se seguir o próprio caminho. Em arte, seguir o próprio caminho é essencial, tenho certeza.

AD - Você se graduou Bacharel em Música pela Universidade São Judas Tadeu, onde estudou com Lina Pires de Campos. Como eram as aulas com ela? Que tipo de repertório era estudado?

KF - Quando decidi fazer Música como curso superior meus pais queriam que eu estudasse na UNICAMP porque não queriam que eu morasse em São Paulo. Na época tínhamos nos mudado para o interior porque a empresa na qual meu pai trabalhava mudou sua sede para o interior. Mas como boa rebelde fiz questão de errar o que pude nas provas da UNICAMP porque tinha decidido que queria ser aluna da Lina em São Paulo, e ela só dava aulas na Universidade São Judas Tadeu nessa época. Fui aprovada pela Lina na prova de piano com nota 10, mas mesmo assim meus pais não me deixaram morar em São Paulo apesar de ter parentes aqui, e eu passei 3 anos, de segunda à sexta, acordando 3h50 da manhã para pegar o primeiro ônibus para São Paulo às 4h30, fazendo durante todos esses anos 2 horas de viagem para ir e 2 horas para voltar, isso quando não tinha trânsito. Fiz o curso matutino, sempre estudava na Faculdade durante a tarde porque o piano que eu tinha em casa era horrível, e voltava para casa apenas para dormir. Talvez se eu fizesse isso hoje não aguentaria e desistiria, mas quando se tem 18 anos tudo é muito mais fácil.

O repertório que estudei com a Lina foi o repertório tradicional. Ela nunca gostou de música contemporânea, chegava até Camargo Guarnieri, Alberto Ginastera, e não passava disso. Mas na época isso não era um problema para mim, porque eu não conhecia nada de música nova.

Apesar de ter decidido que queria ser aluna da Lina por causa dos alunos dela que eu via nos concursos de piano, as aulas com ela não eram muito tranquilas. Sempre toquei do jeito que queria, e isso envolvia desde detalhes como dedilhado até minha postura ao piano, e isso era terrível para a Lina. Além disso, quando comecei as aulas com ela, logo na primeira aula, ela me disse que eu ficaria ao menos 4 meses estudando apenas exercícios técnicos. Foi decepcionante para mim, e essa decepção só acabou quando percebi que os exercícios que ela me passava estavam realmente melhorando minha técnica, minha postura, minha concepção de fraseado, etc. Sempre digo que conhecer a Lina mudou minha forma de entender música. Ela foi essencial na minha vida musical.

AD - Ela possui diversas peças para piano, ainda pouco conhecidas. Você chegou a estudar ou apresentar alguma?

KF - Sim, estudei e toquei algumas vezes as duas Valsas e a Sonata. A Valsa nº2, que é a que mais gosto e acho maravilhosa, ainda toco em alguns recitais.

AD - Em 1999, você ganhou visibilidade nacional ao vencer o X Prêmio Eldorado de Música, que resultou na gravação de um CD. No repertório, sonatas de Prokofieff, Ginastera, Ravel, Mario Campos, e Lorenzo Fernandez. Como você vê o impacto deste prêmio em sua carreira?

KF - Vencer o Prêmio Eldorado causou um grande impacto na minha vida como pianista, com certeza, de várias formas. Além dos muitos convites para recitais e concertos que recebi depois do Prêmio Eldorado, por causa do CD que gravei como parte dessa premiação consegui bolsa de estudos no Festival de Oxford, Inglaterra, e nesse Festival fiz um recital solo e recebi o convite do pianista Menahem Pressler para estudar com ele na Indiana Univesity, Estados Unidos. Acabei nunca entrando em contato novamente com ele sobre isso, mas foi incrível receber esse convite porque sempre admirei muito a forma dele tocar. Me lembro de ir de Oxford para Londres no carro do produtor do festival, de carona, junto com o Pressler, e pensava que nunca tinha imaginado vivenciar isso.

Também por causa desse CD consegui ser aceita no curso A Frase da pianista Maria João Pires, em Portugal. Fiquei duas semanas na casa dela em Castelo Branco, foi uma das maiores experiências musicais que tive na vida. Na mesma época recebi o convite do Caio Pagano para fazer meu mestrado com ele na ASU, nos Estados Unidos, mas acabei não aceitando porque não queria morar por lá. Também por causa desse CD ganhei uma bolsa de estudos na Trinity Music Academy em Londres, Inglaterra, porque um dos professores dessa escola, para quem eu havia entregue um exemplar do CD quando regeu um concerto para piano e orquestra que fiz, conseguiu uma bolsa para mim mesmo sem eu ter pedido. Eu cheguei a ir para Londres, mas acabei desistindo do curso logo depois de efetuar a matrícula na escola. Foi uma época bem maluca, ninguém acreditava ou entendia o porquê de eu ter abandonado essa bolsa de estudos.

Antes disso, durante os 8 anos anteriores ao Prêmio, eu não fiz quase nada como pianista. Tocava pouco, e do final de 1994 até 1996 eu, inclusive, não tive piano em casa. Voltei a ter um piano no começo de 1997, quando consegui comprar um piano da Yamaha, usado, daquele modelo pequeno chamado “apartamento”. E foi nesse piano, 2 anos depois, que estudei o repertório para o Prêmio Eldorado e que no qual, por fim, acabei ganhando o 1º lugar em 1999.

Logo que ganhei o Prêmio e recebi uma enxurrada de convites para entrevistas, concertos com orquestras, recitais, propostas de bolsas de estudos e até eventos os mais diversos possíveis, comecei a questionar a própria carreira e a definição de carreira de solista. Por quê tenho que tocar sempre o concerto que querem que eu toque? Por que os solistas têm pouco espaço para sugerirem obras? Por que o público insiste em ouvir sempre as mesmas peças, sem sequer saber o que acontece fora dessa “casinha” já tão conhecida? E mais: o que eu, enquanto artista, estou acrescentando ao mundo musical? Será mesmo que depois de tantas execuções estupendas do Concerto nº2 de Sergei Rachmaninoff conseguirei propor um olhar diferente de todos que já foram propostos?

Nunca entendi e continuo não entendendo como alguém que se diz artista não se preocupa com essas questões, se a arte é, dentre muitas outras coisas, um  questionamento da própria realidade. E conheço muita gente que talvez até ache perda de tempo isso que digo. Mas realmente não acho que ser artista seja simplesmente executar bem ou até muito bem um determinado repertório. Ser artista é sempre propor um novo olhar, seja como for. Acho que antigamente isso era muito mais definido e valorizado. Só tinha reconhecimento quem tinha personalidade. Hoje em dia é possível ouvir 20 pianistas tocando tudo maravilhosamente bem, mas igual. Hoje em dia me parece, às vezes, que basta o pianista se encaixar no modelo definido de virtuose e se portar de acordo com determinadas regras para ter uma carreira, inclusive internacional. E muitas vezes tenho a certeza de que não se busca mais personalidade, apenas excelência. Confesso que isso me desanima muito em vários momentos.

Como questionadora que sempre fui essas dúvidas sempre me incomodaram, mais ainda quando me vi com uma agenda tão lotada que mal conseguia organizar minha vida pessoal. E não gostei do que vi. Acho que talvez para muitos pianistas esse seja o sonho maior, ter uma agenda lotada de concertos. Pra mim nunca foi, preciso e gosto de ter tempo para fazer muitas coisas, dentre elas tocar piano. Mas não só tocar piano. Preciso trabalhar, com certeza, porque não tenho e nunca tive dinheiro sobrando, mas se decidi fazer arte preciso ter consciência do que faço e não apenas aceitar tudo que me é proposto.

AD - Além deste, você foi premiada em cerca de outros 20 concursos. Como foi esta vivência, e como você se preparava para cada concurso? Você se identificava com o repertório que tinha que estudar?

KF - Comecei a fazer concursos na infância, mas eu não gostava de estudar, nem um pouco. Principalmente se não fosse o repertório que eu queria tocar. Deixava sempre para aprontar as peças na última hora, e sempre levava bronca da professora. Mas eu aprendia e decorava com facilidade e não ficava nervosa para tocar. Nem sempre gostava das peças que tinha que tocar, mas como em vários concursos existia sempre uma ou outra peça de confronto obrigatória, eu tinha que estudar, gostando ou não.

Como disse anteriormente, sempre encarei os concursos ou como uma forma de ganhar dinheiro para comprar o que queria, na infância, ou como um trabalho, na adolescência e no começo da vida adulta. E um trabalho que me gerava outros trabalhos (concertos e recitais). Não fui premiada em todos os concursos que fiz, e em alguns deles fui classificada em segundo, terceiro ou até menção honrosa. Às vezes até reclamava do resultado quando não concordava, mas nunca me importei em não ganhar. Mas ganhei muitos deles, 21, se não me engano. Estudava para ganhar, porque acho que é mentira quando alguém diz que só quer participar, mas se não ganhasse usava isso para estudar mais para o próximo.

Sempre enxerguei concursos como algo extra, é um julgamento de um momento por uma banca determinada. Talvez em outro momento e com outra banca o resultado seria outro. Ou seja, concursos não definem carreira alguma, apesar de ajudarem bastante na maioria das vezes. Por isso não entendo quem diz que parou de tocar por causa de um concurso ou quem ficou hiper magoado e frustrado por não ter ganho.

AD - Você hoje é uma grande especialista em música contemporânea, que ainda é pouco divulgada por nossos músicos, e pouco abordada em cursos de piano. Como se deu a transição para este tipo de repertório em sua trajetória?

KF - Bom, não me sinto especialista, longe disso, apesar de atualmente tocar mais peças contemporâneas que outras peças. Mas meu repertório contemporâneo ainda é bem pequeno frente ao tanto de obras existentes.

A semente do interesse em música contemporânea foi plantada na Faculdade quando comecei a ter aulas de música moderna e contemporânea com o Paulo Maron. Mas demorei alguns anos para colocar peças contemporâneas no repertório, um pouco pela falta de acesso às partituras e um pouco por não ter contato com compositores de música nova, especificamente.

Acho que minha personalidade crítica e minha busca constante por propor algo novo e diferente do que é sempre proposto me fez seguir esse caminho quase que naturalmente.

Hoje basta um celular e uma conexão para a gente escutar muitos pianistas tocando, mas me lembro da dificuldade antes da era digital, ao menos da minha que nunca tive dinheiro para comprar muitos discos ou CDs, de ouvir outros pianistas tocando o repertório que eu queria preparar. Principalmente o repertório mais moderno. Hoje, quando gravo uma peça inédita, fico pensando que talvez ajude alguém que busca conhecer esse repertório. Me sinto mais viva com isso.

AD - Você já estreou diversas peças brasileiras, algumas delas encomendadas por você. Pode nos falar um pouco sobre elas?

KF - Gosto muito de tocar peças inéditas, principalmente de compositores com quem poderei discutir questões interpretativas. Para viabilizar isso comecei a redigir projetos de patrocínio para encomendar novas obras e gravá-las em CDs. Dos meus 11 CDs 8 foram projetos que eu mesma orcei, redigi, produzi, toquei. No mais recente, inclusive com 3 peças encomendadas por mim, também fui a fotografa, a designer do projeto gráfico e também escrevi os textos sobre as obras. Como disse, não nasci apenas para tocar piano.

Quando gravei o CD Edmundo Villani-Cortes – OPUS 80, inteiro com obras do Villani incluindo piano solo e piano e orquestra, com uma obra para piano e orquestra de cordas encomendada, tive o Edmundo assistindo à todas as sessões de gravação. Quando gravei o cd Cria – nova música brasileira vol. I, em Nova Iorque, os compositores Sergio Kafejian e Felipe Lara estavam presentes. A peça do Kafejian era encomenda. E tantas outras vezes que estreei ou gravei peças, encomendadas por mim ou não, os compositores estavam presentes. Acho que é um acontecimento único quando você estreia uma peça com o compositor presente. Tanta gente queria conhecer Beethoven, Chopin, Bach... mas não entende que temos compositores ótimos e ainda vivos, e que essa experiência é possível, basta querer.

AD - Também vemos em seu repertório obras de compositores ligados à tradição romântica, nascidos no século XIX, como Miguez, Velasquez, e Rachmaninoff. Como estes compositores se alternam no seu repertório?

KF - A música brasileira ainda sofre um bocado com a falta de boas partituras, de gravações, de divulgação. Tenho vários projetos que ainda não consegui realizar e que olham para o passado. Tenho um projeto grande com obras de Radamés Gnattali, tenho outro com as peças da Eunice Katunda, e com certeza terei muitos outros que também terão como ponto de partida o resgate de obras pouco ou nunca tocadas e totalmente desconhecidas. Sempre penso que sem incentivo ao novo, morremos, mas sem memória não temos futuro. Então acho tremendamente importante manter também esse viés na minha vida musical. Até porque esse viés tem tudo a ver com a minha vontade de sempre tentar “dizer” alguma coisa diferente do que já foi dito musicalmente.

Meu CD Seresta, Choro e Homenagem a Fructuoso Vianna, com obras para piano e orquestra de Camargo Guarnieri é um exemplo disso também. Apesar de já existirem outras gravações da Seresta e do Choro, são duas obras que ninguém toca. E são obras absolutamente maravilhosas. A Homenagem a Fructuoso Vianna nunca tinha sido gravada, e acho que foi executada uma vez apenas, com regência do próprio Guarnieri.

AD - Seu CD “Cria – nova música brasileira, vol I” venceu o Prêmio Concerto 2015, na categoria CD/DVD/Livro, e apresenta diversas estreias mundiais. Como foi a escolha deste repertório?

KF - A escolha do repertório foi simples. Não quis abordar uma escola ou uma linha de composição, quis a diversidade mesmo, claro que com a proposta de música nova. E como sempre, escolho as peças que gosto, e pronto. Eu queria ao menos 3 peças inéditas e queria gravar outras que tinha vontade de gravar. Bastou apenas decidir para quais compositores encomendar as peças.

Conheço a Tatiana Catanzaro há alguns anos e já tinha tocado outras peças dela para piano solo e também para ensemble. O Sergio Kafejian é um compositor com quem também tenho contato há alguns anos, e foi outro escolhido para compor algo para esse cd. A Sonata do Arrigo Barnabé já estava pronta desde 2000, quando ele me entregou a partitura. Eu tinha que ter gravado essa Sonata no cd do Prêmio Eldorado, mas não tive tempo suficiente de prepará-la porque ele me entregou a partitura faltando poucos dias para o último dia de gravação, então gravei agora.

AD - Seu CD dedicado a Camargo Guarnieri, com a OSUSP, foi finalista do 27º Prêmio da Música Brasileira, neste ano. Pode nos falar um pouco sobre como foi o planejamento e gravação deste CD?

KF - O planejamento desse CD foi bastante complicado. Na verdade, quase não valeu nada ter planejado alguma coisa, porque muita coisa deu errado. O CD foi aprovado num Edital ProAC, ou seja, a verba era de R$80.000, nada mais. Quem sabe das demandas de uma orquestra sinfônica, ainda mais quando se trata de uma gravação de CD, pode imaginar que sou um tanto maluca em querer realizar um projeto desse porte com uma verba quase ínfima para isso.

E durante a produção do CD tive uma série de problemas. A OSUSP tinha um local onde ensaiava que seria usado para a gravação, mas perderam as datas nesse local. Em São Paulo não existem estúdios grandes onde caibam orquestras sinfônicas, ao menos não com valores que coubessem num orçamento de R$80.000. A saída foi gravarmos ao vivo o Choro para piano e orquestra no concerto que seria o concerto de lançamento, na Sala São Paulo; usar a gravação da Seresta para piano e orquestra de câmara, também feita ao vivo na mesma Sala São Paulo um ano antes; e gravar em estúdio apenas a peça cuja formação caberia num estúdio: a Homenagem a Fructuoso Vianna para piano e orquestra de cordas. Vou dizer uma coisa: foi com muita emoção, se é que me entendem! Houve dias que pensei que não conseguiria realizar esse projeto por causa do tanto de problemas e imprevistos que tive. Quando finalmente consegui encerrar o projeto, quase não acreditei. E quando recebi a notícia de que o CD era finalista num prêmio tão disputado como o Prêmio da Música Brasileira, de certa forma lavei a alma, mesmo sabendo que o Prêmio é altamente voltado ao mercado, e meu CD estava bem longe do mercado.

Interessante que esse meu CD concorreu ao Prêmio da Música Brasileira com outros dois CDs, ambos da OSESP, que têm uma verba milionária para realizar seus projetos.

AD - Você mencionou o CD inteiramente dedicado a obras de Edmundo Villani-Côrtes, e há outro dedicado a peças de Edson Zampronha. Como tem sido essa relação intérprete-compositor que você tem vivenciado em tantos trabalhos?

KF - Acho que essa relação é ótima e tem sido ótima. Como falei anteriormente gosto muito de poder estrear peças, de tocar peças cujos compositores estão vivos. Principalmente quando a peça acabou de ser composta, me sinto quase que criando junto com o compositor, porque essa peça ainda não saiu do papel e vai sair com a minha execução. Isso é muito bacana, eu acho.

AD - Na sua opinião, o que precisa mudar para que os músicos passem a tocar mais obras de compositores vivos?

KF - Acho que o problema é que a maioria das pessoas tem medo e preguiça do novo. É uma questão humana e não necessariamente dos músicos. É muito mais cômodo tocar peças conhecidas, e muito mais fácil conquistar o público também. Às vezes tenho a impressão de que muitas pessoas valorizam demais o sucesso, por isso não se aventuram. O sucesso é algo bom, sem dúvida, mas tenho um certo asco da busca pelo sucesso quando se tem o sucesso como foco principal. Isso em arte, pra mim, é inaceitável. Não consigo considerar como artista a pessoa que decide fazer um determinado repertório porque vai fazer sucesso.

Então acho que para se mudar isso seria necessário mudar essa característica da maioria das pessoas, músicos e público.

Além disso falta vontade de saber das coisas por parte de muitos músicos. Falta vontade de pesquisar, ouvir novos sons. Falta curiosidade e vontade de questionar o que já foi estabelecido. Isso é triste.

AD - Como você mencionou, no Brasil ainda vivenciamos um grave problema de acesso a partituras. Já houve alguma obra que você gostaria de tocar, mas não pôde por impossibilidade de conseguir a partitura?

KF - Sim, várias vezes acabei desistindo de tocar alguma obra por não conseguir a partitura. Hoje em dia isso acontece com menor frequência, mas ainda assim acontece. Outro dia desisti de uma obra que está fora de catálogo e a editora não tem previsão de quando irá imprimir outras cópias.

Além disso na questão do resgate também encontrei esse problema. Por exemplo algumas obras do Radamés Gnattali e da Eunice Katunda precisam ser revisadas e editoradas, porque as partituras são quase impossíveis de se decifrar.

AD - Você também já gravou CDs dedicados a músicas de câmara com o Trio Puelli e com o violinista Emmanuele Baldini. Que projetos você tem desenvolvido neste âmbito?

KF - Tenho muitos projetos nesse âmbito. Quando era professora no Conservatório de Tatuí criei o Encontro Internacional de Música de Câmara, um festival que teve 2 edições; criei o Circuito Paulista de Música de Câmara, que fazia um intercâmbio de grupos de câmara entre o Conservatório de Tatuí, a USP, a UNICAMP e a UNESP; e também criei o Prato do Dia, que era uma série de apresentações de grupos de câmara envolvendo alunos e professores da escola com artistas da cidade, e isso na hora do almoço, sempre com um prato feito vegetariano disponível por um preço baixíssimo. Atualmente estou montando um projeto com a Camila Fresca, com realização prevista para 2017, de concertos de câmara em espaços de jazz e música instrumental. E tenho outros 2 projetos prontos de gravação de CD do Trio Puelli, além de pelo menos outros 2 ou 3 envolvendo outras formações. Ideias nunca faltaram, o que me falta são meios de realizá-las. A quantidade de projetos que tenho é muito maior do que os editais e patrocinadores disponíveis e dispostos, sempre penso isso. Mas sigo tentando.

AD - No CD Baqte, vemos uma obra sua intitulada “Pausa para o café”, que utiliza diversas experiências sonoras com timbres do piano, voz, xícara e máquina de café. Este foi seu Opus 1? Há/haverá outros?

KF - Sim, foi meu opus 1, e foi divertidíssimo fazer. Tenho planos de gravar o volume III do Cria inteiro com peças autorais, incluindo improvisações ou vinhetas como foi a Pausa para o café.

AD - Quais são os pianistas de sua preferência (sejam brasileiros ou estrangeiros). Poderia nos indicar algumas gravações que lhe servem de referência?

KF - Acho que prefiro definir os pianistas favoritos A partir das obras que tocaram/tocam, e quanto entendo como a interpretação deles foi/é essencial e marcante. Por exemplo Magda Tagliaferro tocando peças de Manuel De Falla, Isaac Albéniz ou Enrique Granados;  Friedrich  Gulda tocando Gaspard de la Nuit de Maurice Ravel; Maria João Pires tocando Franz Schubert; Menahem Pressler e Mitsuko Uchida, ambos tocando os Concertos de Ludwig van Beethoven; Nelson Freire tocando os dois Concertos para piano de Frédéric Chopin; Pierre-Laurent Aimard tocando György Ligeti; Vladimir Horowitz tocando a Fantasie op.17 de Robert Schumann; ou Krystian Zimerman tocando o Concerto nº2 de Sergei Rachmaninoff. Dentre tantos outros esses são bons exemplos disso.

AD - Como você vê a importância do piano brasileiro no panorama mundial?

KF - Acho que é impossível ignorar a importância do piano brasileiro no panorama mundial, e me refiro tanto a professores, intérpretes e compositores de peças para piano. Magda Tagliaferro, por exemplo, foi, na minha opinião, quem mais contribuiu para a formação de uma escola pianística brasileira. Quanto aos intérpretes, acho que temos muitos jovens talentos sendo revelados e projetados internacionalmente. Talvez o que falte seja uma maior valorização da nossa música para piano por parte desses jovens e também de pianistas consagrados. A maioria dos pianistas brasileiros se restringe a execução de peças de Villa Lobos, e só ele. Mas temos vários grandes compositores, alguns com peças mais executadas fora do Brasil do que aqui. Sempre acho que isso nos prejudica de várias formas. Quando observamos a importância que alguns países se dão e dão às suas próprias música e cultura, vemos quanto o Brasil perde por ter um povo ainda tão colonizado culturalmente e que frequentemente ignora a própria produção musical.

AD - Boa parte de seus posts no Facebook são dedicados a críticas políticas, e em um de seus concertos você inovou ao levantar um cartaz de manifesto, na hora do bis. Como você vê a interação entre música de concerto e política?

KF - Política é algo do qual ninguém consegue fugir, nem que se isole no meio da mata, porque a política determina até se você terá uma mata onde se isolar. Infelizmente a maioria das pessoas no Brasil é despolitizada e alienada pelas tvs e imprensa, que frequentemente defendem interesses bastante questionáveis do mercado e da elite econômica e não os do povo. Atualmente vejo um favorecimento sem precedentes desse projeto de alienação do povo brasileiro. Corruptos definitivamente adoram um povo alienado, e a situação atual do país não seria essa se as pessoas procurassem saber de verdade das coisas. Vemos revistas de baixíssimo calão com matérias puramente sensacionalistas e exploratórias do justiçamento e não do debate, vemos tvs com uma programação paupérrima, e considero tudo isso um perigo para a formação de cidadãos conscientes e questionadores.

A classe musical, principalmente a erudita, nunca se envolve em questões políticas. Não interage com a política. Interagir com a política significa simplesmente exercer seu dever como cidadão, afinal, dentre outros fatos, somos nós que pagamos os salários dos políticos. Acho que de todas as classes artísticas a musical é a mais alienada. Votar conscientemente? Tem gente que vota em candidato sem sequer saber de fato o que ele propõe, e o principal: como é sua carreira política, que ideias e propostas defende, ou se está sendo processado por alguma irregularidade.

Acho absolutamente ridícula a ideia de que a música salva por si só. Até a música precisa de uma política consistente ou pode ficar à míngua. Músicos, em sua maioria, simplesmente não entendem quanto perdemos quando não nos envolvemos no debate político e não procuramos saber das coisas da política. Sinceramente, e infelizmente, acho a interação da classe musical com a política quase nula. Por vezes vi comentários até com teores fascistas por parte de muitos músicos, inclusive alguns bastante conceituados por aqui. Isso é fruto da alienação política. Independente de alguém se enxergar como de esquerda ou direita, apesar de eu achar uma coisa muito ridícula um artista de direita, é preciso entender que os governos precisam governar para as pessoas, para os cidadãos, garantindo também justiça social, e não governar apenas para o mercado. O mercado é tremendamente opressor e assassino, e esse sistema econômico vai colapsar em breve porque está colapsando as pessoas, os cidadãos. As crises econômicas só existem para que pouquíssimos indivíduos ganhem muito dinheiro. Isso às custas dos povos, dos trabalhadores, que são maioria. Mas a maioria das pessoas por aqui não entende isso, muito menos quem se fecha apenas no mundo da música.

AD - Quais são seus planos futuros? Você gravaria a obra integral de algum compositor? Se sim, qual?

KF - Planos não faltam. De imediato quero gravar outros 2 CDs: Cria vol.II, com peças de Valéria Bonafé, Fernando Riederer, Michelle Agnes, Flo Menezes, e Carlos dos Santos; e Caderno de Imagens e Estampas, com peças de Claude Debussy, Silvio Ferraz e Rodrigo Lima.

Quanto a gravar a integral de algum compositor, não sei. Talvez grave todas as obras para piano de uma compositora já falecida porque não são muitas. Na verdade, é um pouco difícil para mim realizar um projeto assim porque não existe nenhum compositor de quem goste de todas as obras, e gravar, para mim, começa pela escolha de obras que eu goste.

Mas tenho alguns projetos que ainda não saíram do papel de gravar integrais de alguma forma musical de alguns compositores, como concertos ou sonatas, por exemplo.