Uma carta de Camille Saint-Saëns a Barrozo Netto

Por Alexandre Dias

Se você vivesse em 1916 e tivesse a oportunidade de escrever a Camille Saint-Saëns, um dos maiores mitos do piano, você pediria que ele escrevesse uma peça dedicada a você?

O pianista carioca Barrozo Netto fez isso, e recebeu uma resposta com delicada ironia francesa, confira abaixo.

 
Barrozo Netto e Camille Saint-Saëns

Saint-Saëns estava na época com 81 anos, recém completados, e ainda era um dos maiores pianistas do mundo (neste raro filme de 1914, podemos vê-lo tocando sua Valse mignonne – o filme original é mudo, porém ele foi sincronizado com o áudio da gravação comercial do próprio Saint-Saëns realizada em 1919, e o resultado ficou quase perfeito).

Há décadas sua música já estava consagrada no meio pianístico, por obras como o Concerto No.2 para piano e orquestra, o Carnaval dos animais, e seu dificílimo Estudo em forma de valsa, que Alfred Cortot registrou em disco em janeiro de 1919, em uma gravação que impressionou Horowitz, e levou-o a perguntar que dedilhado Cortot utilizava nas notas duplas (Cortot não falou).

Barrozo Netto tinha contato com diversos mestres europeus, como por exemplo Isidor Philipp (professor de Guiomar Novaes), Jules Massenet e Benno Moiseiwitsch, e dedicou obras a Emil Frey, Alexander Brailowsky, Carlo Zecchi, Beveridge Webster e Claudio Arrau. Alguns destes chegaram a incluir suas peças em concertos, um feito raro para o piano brasileiro.

Portanto parece natural que Barrozo Netto viesse a pedir que um dos maiores mitos do piano lhe dedicasse uma peça. Porém Saint-Saëns explica em sua carta, de maneira evasiva, que “para lhe dedicar alguma coisa, seria necessário escrever alguma coisa”, e completa dizendo que não poderia lhe dedicar a música de cena que havia acabado de compor para a peça de teatro “On ne badine pas avec l'amour". O título em francês significa “Não se brinca com o amor”, o que provavelmente não funcionaria como uma dedicatória entre dois homens no início do século XX - Saint-Saëns utiliza de uma ironia francesa sutil, que pode ser interpretada como uma recusa ao pedido.

À parte disso, a carta termina com uma referência importante à Primeira Guerra Mundial, que estava em pleno curso: “A vitória, [ainda que difícil], ela está a caminho, mas nós não a temos ainda, e muitos lutos, muitas infelicidades nos separam dela. Quando tudo acabará, e como? A Alemanha deve ser derrotada e ela se defenderá até o último homem, sabendo que sua existência está em jogo. É a ruína universal, a morte da Europa, o triunfo da América [do Norte], rainha dos novos tempos.”

Confira abaixo o conteúdo integral da carta.

Texto traduzido para o português:

“Paris

24 de outubro

1916

Rue de Courcelles, 83

Não, meu caro amigo, eu não me esqueci de você nem me esquecerei, ponto, mas é preciso que me perdoe, eu tenho muitas ocupações sobre minha cabeça, e uma correspondência assustadora - esta carta é a oitava que escrevo nesta manhã!

Graças à temporada de águas [termais] que tive ao chegar, a [minha] saúde está reestabelecida; eu tenho mesmo caminhado grandes distâncias a pé.

Para lhe dedicar alguma coisa, seria necessário escrever alguma coisa. Eu não posso, portanto lhe dedicar a música de cena que acabei de escrever para “On ne badine pas avec l'amour" [Não se brinca com o amor], de Alfred de Musset.

A vitória, [ainda que difícil], ela está a caminho, mas nós não a temos ainda, e muitos lutos, muitas infelicidades nos separam dela. Quando tudo acabará, e como? A Alemanha deve ser derrotada e ela se defenderá até o último homem, sabendo que sua existência está em jogo. É a ruína universal, a morte da Europa, o triunfo da América [do Norte], rainha dos novos tempos.

Seu amigo muito sincero e dedicado,

C. Saint-Saëns”


Trecho inicial da carta de Camille Saint-Saëns enviada a Barrozo Netto em 24/10/1916

Texto original, em francês:

“Paris

24 octobre

1916

Rue de Courcelles, 83

Non, mon cher ami, je ne vous oublie ni ne vous oublierai point, mais il faut me pardonner, j'ai des occupations pardessus la tête, et une correspondance effroyable , cette lettre est la huitième que j'écris ce matin!

Grâce à la saison d’eaux que j'ai fait en arrivant, la santé est rétablie, je fais même d'aller grandes courses à pied. 

Pour vous dédier quelque chose, il faudrait faire quelque chose. Je ne puis pourtant pas vous dédier la musique de scène que je viens d'écrire pour "On ne badine pas avec l'amour" d'Alfred de Musset.

La victoire, Hélas!, elle est en marche, mais nous ne la tenons pas encore, et bien des deuils, bien des malheurs nous en séparent. Quand tout cela finirait -il, et comment? Il faut que L'Allemagne soit abattu et elle se défendra jusqu'au dernier homme, savant que son existence est en jeu. C'est la ruine universelle, la mort de l'Europe, le triomphe de l'Amérique, reine des temps nouveaux. 

Votre ami bien sincère et dévoué,

C. Saint-Saëns”

Baixe aqui a imagem da fotocópia completa desta carta, vinda do acervo de Aloysio de Alencar Pinto, que Georges Mirault doou ao IPB.

Seria interessante sabermos o conteúdo da carta que Barrozo Netto enviou a Saint-Saëns, porém, se uma cópia sobreviveu, ela ainda não veio à tona.

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Diversas pessoas se prontificaram a nos ajudar na transcrição e tradução desta carta, quando postamos uma solicitação em nossa página. Agracemos especialmente a Mara Lucia Ferreira Dias, Lenine Santos, Nancy Bueno, Yara Ferraz, Mario Marques Trilha, e Rodrigo Couras que ajudaram a decifrar diversas palavras do manuscrito, e a Georges Mirault, Yara Ferraz, Luiza Aquino, e Marcus Rodrigues, que ajudaram a resolver diversas dúvidas na tradução.