Villa-Lobos por Aloysio de Alencar Pinto

 

No dia 14 de maio de 1994, o pianista, compositor e grande musicólogo Aloysio de Alencar Pinto foi entrevistado por Maria Augusta Machado da Silva e Vasco Mariz, na residência deste último. O tema era um compositor caro a todos: Villa-Lobos, de quem Mariz é biógrafo. Aloysio conheceu Villa em Paris em 1933, tornando-se um grande amigo, e estudioso de sua obra.

Este depoimento foi enviado ao IPB por Georges Mirault, filho de Aloysio, e está repleto de detalhes e informações interessantes sobre a trajetória de Villa-Lobos.

Segundo Georges, Aloysio foi apresentado a Villa-Lobos por meio de uma carta de Renato Viana, grande amigo de Villa-Lobos, e um homem de teatro em Fortaleza. Mas a amizade de Aloysio com o compositor se consolidou a partir de 1939-1940, com a volta de Aloysio ao Rio de Janeiro, e por intermédio de Sá Pereira e Camargo Guarnieri. Aloysio frequentava a casa de Villa-Lobos no centro do Rio para conversas diárias, com a presença de Manuel Bandeira e de Mário Lago, que residia no mesmo prédio. Segundo Georges, a primeira versão da “Valsa da dor” foi grafada por Aloysio, depois de Villa a ter executado ao piano. Aloysio pediu-lhe a partitura, mas Villa falou "eu lhe dou a cópia depois”. No dia seguinte, Aloysio lhe entregou a pauta com a peça (depois de grafar o que havia memorizado, de ouvido). Villa caiu do cavalo!

Divulgamos a seguir a transcrição do texto completo. Os grifos são do próprio transcrito original.

“Entrevista com o acadêmico Aloysio de Alencar Pinto a 14 de maio de 1994, com a presença de Maria Augusta Machado da Silva e Vasco Mariz, na residência deste último.

              O início da conversa foi centralizado nas viagens de Villa-Lobos à Amazônica. O compositor disse a Vasco Mariz, em 1946, que fez longa viagem com um músico boêmio e beberrão chamado Donizetti, sem precisar datas nem locais visitados por eles, salvo a passagem a vau em um rio amazônico, onde perderam parte de seu equipamento. O professor Alencar Pinto conheceu pessoalmente alguns dos irmãos Donizetti, cuja família na verdade era Oliveira Gondim. Eram donos de uma bem conhecida casa de música em Manaus, batizada em homenagem a Donizetti, nome que acabou sendo incorporado pelos cinco irmãos.

              Os Donizetti eram sete, sendo o mais importante deles Raimundo, que estudou em Milão com Vincenzo Ferroni e foi diretor do Teatro da Paz, em Belém. Mozart era compositor, viveu no Rio e transferiu-se depois para o Acre, onde acabou prefeito de uma pequena cidade do Estado. Wagner viveu em Fortaleza e era b om saxofonista. João foi diretor do Teatro Amazonas, importava instrumentos e música da Europa e de São Paulo para seu negócio musical em Manaus. Paulo era bom músico, foi afinador e consertava pianos. Francisco era o mais moço e foi médico. Haia ainda uma irmã que era cantora. O companheiro de Villa-Lobos deve ter sido Raimundo. A viagem única do compositor à Amazônia foi em 1912, e não em 1911, como se tem dito. Villa-Lobos só voltou ao Nordeste muito mais tarde, em 1940, quando visitou a Paraíba e Rio Grande do Norte a convite de Gazzi de Sá, que trabalhou com ele no Conservatório de Canto Orfeônico. Villa tinha muito desejo de conhecer pessoalmente Luís da Câmara Cascudo em Natal. A namorada de Villa-Lobos em Fortaleza, em 1912, não era filha de Paurilo Barroso, e sim uma prima dele.

              Aloysio de Alencar Pinto conheceu Villa-Lobos em 1933, apresentado por carta de Renato Viana. O compositor era escandaloso por natureza, usava camisa quadriculada e chapelão. No entanto, quando queria, ou era necessário, sabia ser muito civilizado. Comprou um grande carro Dodge. Nas audições e recitais de Villa-Lobos no Conservatório vinha pouca gente e ele ficava muito irritado. Certa vez comentou com ele que um crítico de Nova York comentou as “Bachianas Brasileiras” como sendo Bahianas Brasileiras... Relatou também que o compositor lhe disse certa vez haver feito mal em grafar os Choros com ch, porque no exterior todas as músicas com este título implicavam a presença de coros. Devia, disse ele, ter escrito xoro e não choro para evitar confusão.

              Villa-Lobos nunca estudou cientificamente o folclore. Utilizava a expressão “ambientado por Villa-Lobos”, mas na realidade tratava-se de “arranjos”. As palavras que utilizou em suas obras em língua tupi ou dialetos negros nada queriam dizer e as empregava apenas para obter os sons apropriados, que considerava eufônicos. As “Cirandas” de Villa-Lobos são, em parte, criação dele mesmo. Apenas oito das 16 cirandas da série são autênticas, as demais foram escritas pelo compositor à maneira das cirandas.

              O Villa era devoto de São Jorge. Aloysio teve ocasião de vê-lo na intimidade e notou que costumava usa ceroulas e liga para sustentar as meias, além de suspensórios. Villa-Lobos queria faze cantar apenas e o objetivo do Conservatório não era de ensinar música. O compositor não tinha o hábito de ler: todo o tempo disponível era para compor, revisar provas musicais, orquestrar, etc. Os leitores de Villa-Lobos foram Ronald de Carvalho e depois Andrade Muricy. Durante a visita de Stokowski e sua orquestra sinfônica juvenil americana ao Rio de Janeiro, em 1942, foi Villa-Lobos e não Donga quem levou o maestro ao terreiro de José Espinguela, do que resultariam dois álbuns de discos.

              Quando Léonid Massine esteve no Rio de Janeiro nos anos 50, Villa-Lobos pediu a Aloysio para traduzir as letras das “Cirandas” para o francês, pois ele pensava transformá-las em um bailado, orquestrando-as e escrevendo pequenos intermezzos entre elas para melhor adaptá-las ao palco. Massine não se entusiasmou porque as cirandas são muito curtas, um a dois minutos apenas, o que dificultava sua adaptação para o balé.

              Villa-Lobos certamente viu e estudou a fotografia do Marechal Rondon e de Roquette Pinto, cercados de índios em torno a um fonógrafo da época. A foto é de 1912, época da expedição Rondon, e certamente lhe ficou na memória, utilizando-a depois em suas entrevistas em Paris com Lucie Delarue-Mardrus, que tanto escândalo fizeram na França em 1927.

              Mario Lago morava em cima, no apartamento superior, da casa de Villa-Lobos na Vila Rui Barbosa, na rua Dídimo.

              Aloysio não considera definitiva a descoberta nossa de que Villa-Lobos jamais frequentou a Escola Nacional de Música, da rua do Passeio. O jovem compositor estudou três anos com Benno Niedenberger, que era o maior violoncelista da época no Rio, e se apresentava em trios com Artur Napoleão e Vincenzo Cernicchiaro (violino). O Villa pode ter sido ouvinte na Escola e não ficou registrado.

              Aloysio sublinhou importante pormenor de que considera essencial o aprendizado feito pelo compositor na época em que tocava em pequenos conjuntos para acompanhar os filmes do cinema mudo. As partituras de acompanhamento dos filmes vinham da Europa (Itália, Inglaterra e França) e dos Estados Unidos e eram músicas de boa qualidade, bem orquestradas, e traziam novidade da época para o Brasil, como os cake-walks. Rubinstein foi levado ao cinema Odeon por duas senhoras amigas e se encantou com as Danças Africanas de Villa-Lobos, já que nessa obra o sincopado está apenas na mão direita, como nos cake-walks. Aliás, Villa-Lobos disse a Vasco Mariz que, aí por 1915, tinha ficado encantado com o Cake Walk de Debussy. O professor Aloysio recorda-se de que, em Paris, conheceu Prokofiev, que era amigo de Villa-Lobos, e lhe disse que os dois então jovens compositores eram “les deux sauvages de Paris”. Lembrou ainda o importante papel desempenhado por Vera Janacopulos na divulgação da música de Villa-Lobos na França.

              Recordou também que dois dos músicos que acompanharam Villa-Lobos na audição dada a Rubinstein no Palace Hotel do Rio de Janeiro foram Fructuoso Vianna e Newton Padua. Contou que o Rudepoema, dedicado a Rubinstein, como uma espécie de desafio pela extrema dificuldade, jamais foi interpretado completo pelo pianista, que tocava apenas uma versão por ele mesmo preparada e bastante condensada do Rudepoema. Julga Aloysio que uma feliz coincidência facilitou a divulgação da Prole do Bebê nº 1: o disco de Rubinstein trazia de um lado a Triana de Albéniz, que foi um imenso sucesso dele. Assim os centenas de milhares de admiradores que adquiriram a Triana, levavam também as peças de Villa-Lobos... Aliás, Rubinstein gostava de todas as bonecas da Prole do Bebê, menos uma, que substituía por Alegria na Horta, o que irritava muito Villa-Lobos.”