Mario Braz da Cunha, o maior gravador de partituras do Brasil

Por Alexandre Dias

Quem já estudou em partituras brasileiras antigas, certamente já se deparou com uma curiosa inscrição abaixo do último compasso de várias delas: "MARIO, Gravador"

Quem seria este profissional sem sobrenome, que aparece assinando centenas de partituras das décadas de 1920 e 1930?

Uma pesquisa na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e em documentos da época permitiu que finalmente elucidássemos essa questão. Neste texto contaremos brevemente sua história, que começou ligada a músicas populares impressas para o carnaval, e cuja expertise o acabou levando a trabalhar com ninguém menos que Villa-Lobos, tornando-o uma referência da musicografia nacional.

A indústria brasileira de partituras foi uma das maiores do mundo, somando centenas de milhares de publicações, que começaram na primeira metade do século XIX, e atingiram seu ápice nas primeiras décadas do século XX. Existiam muitas oficinas de impressão no Rio de Janeiro, São Paulo e em alguns outros estados, desde o pioneiro Pierre Laforge, em 1832, até oficinas como E. Bevilacqua & C.; Campassi & Camin e Irmãos Vitale, que realizavam impressões para outras editoras também - para mais informações a respeito, ver a excelente pesquisa de Mercedes Reis Pequeno no verbete “A impressão musical no Brasil”, publicado na Enciclopédia da Música Brasileira (org. Marcos A. Marcondes, 2ª ed., 1998).

No século XIX, as partituras eram grafadas em pedra (litografia), e depois passaram a ser gravadas em chapas de zinco (zincografia), até as primeiras décadas de século XX. É provável que o processo de xilografia (em madeira) também tenha sido utilizado na gravação de partituras no século XIX. Neste vídeo da editora alemã Henle, há uma extraordinária demonstração de como se dá este processo artesanal, em que se esculpe nota por nota.

Partituras publicadas, via de regra, não eram assinadas pelo gravador. Quando apresentavam a fonte da impressão, em geral faziam referência apenas ao nome da oficina.


Exemplos de oficinas de gravação em chapas de zinco, em atividade no início do século XX

Porém, na década de 1920, isto começa a mudar, com o notório aparecimento das partituras assinadas por “Mário, gravador".


Outras formas com que o nome de Mario aparece ao final das partituras

Mario Braz da Cunha, nascido no Rio de Janeiro em 10/09/1882, é uma figura ainda obscura na musicologia. Não sabemos se ele teve treinamento formal em música, se tocava algum instrumento, ou se, quem sabe, era um compositor amador.

Sabemos que ele fazia parte do exército em 1922 – uma das matérias deste ano refere-se a ele como capitão, mas em anos posteriores ele é referido como civil, embora ainda ocupando cargo nas forças armadas. Era casado com Guiomar Granthen Braz da Cunha, e tinha pelo menos três filhas: Syrtes (nascida em 1910), Dercilla e Zuleika.

O registro mais antigo que encontramos de Mario ligado à música é justamente na comemoração do 3º aniversário do Clube Militar, em 13/07/1921. Ele era um dos encarregados da comissão que organizou a parte musical do evento, do qual participou uma orquestra regida por José Francisco de Freitas, o popular compositor Freitinhas.

No ano seguinte, quando Mário estava com 40 anos, o encontramos como “chefe da oficina de gravura da Casa Carlos Wehrs”. Não sabemos há quanto tempo ele já trabalhava neste ofício, mas uma matéria no Correio da Manhã o destaca como a pessoa “digna de louvores” responsável pelos sucessos musicais dos sambas e marchas de 1922 – e por este motivo, foi homenageado por um grupo de amigos.


Correio da Manhã, 28/01/1922


Propaganda da oficina de gravuras e impressão de músicas da Casa Carlos Wehrs, de cuja seção de gravuras Mario Braz da Cunha era o chefe. Contracapa da partitura da "Canção do centenário", de Freire Júnior, edição independente.

No mês seguinte, em fevereiro, Mario aparece mais uma vez ligado ao carnaval, desta vez como integrante da comissão julgadora da batalha de confetes, com ranchos e blocos carnavalescos, da Estação do Meyer, com participação da orquestra de Freitinhas no salão da Casa Amazonas, uma popular loja de sapatos. Freitinhas era colega de Mario na Casa Carlos Wehrs, um como pianista, e o outro como gravador de partituras.

Poucos dias depois deste episódio, em 16 de fevereiro, o Correio da Manhã noticiou que o mesmo Freitinhas reuniu seus colegas músicos do Bloco das Melindrosas no prédio nº 45 da Rua da Carioca, “onde funciona o bar de propriedade do sr. Mario Braz da Cunha, cujo sobrado é a sede do bloco musical”, e ofereceu “uma suculenta feijoada, pelo célebre ‘cuca mundial’, o mestre Primitivo A. de Souza”. Ou seja, Mario não só tinha proximidade com o meio da música de carnaval, como também possuía um bar, cujo segundo andar era sede de um bloco carnavalesco! Este estabelecimento provavelmente servia como ponto de encontro para músicos populares, pois, além da fama da Rua da Carioca por suas várias lojas de música, como À Guitarra de Prata (nº 37), e Casa Carlos Wehrs (nº 47), incrivelmente, no mesmo prédio do bar do Mario, funcionava a Rádio Sociedade, precursora da Rádio MEC. No ano seguinte, em 30/01/1923, o conjunto “Disfarça e passa a mão”, chefiado por Oswaldo Guanabara, fez uma “passeata em automóvel” até a batalha do Engenho Novo, visitando em seguida a “alegre vivenda da família do artista gravador Sr. Mario Braz da Cunha”, onde a caravana executou alguns números do carnaval desse ano, destacando-se o samba “Disfarça e passa a mão” e a marcha “Paraíso das flores”.


Correio da Manhã, 30/01/1923

Em 1923, Mario inicia uma nova empreitada, desta vez explorando sua experiência como gravador: inaugura no dia 19 de junho sua própria oficina de gravura e impressão de música, em sua residência na Rua Souza Barros nº 204. Junto com a oficina, Mario iniciou uma editora, chamada “Salãorchestra”, que publicou pelo menos 60 números, e que provavelmente foi extinta logo depois, pois não encontramos outras referências a ela.

  
Propaganda da editora Salãorchestra, de “Mario Braz da Cunha (MARIO, gravador)”, presente na contracapa de uma de suas edições


Propaganda da Salãorchestra, juntamente com Club Orchestr' e Ideal Orchestra, como "criadoras das melhores novidades" de partituras para pequena orquestra. Rodapé da partitura do fox-blues Stella, de Al Jolson, Benny Davis, e Harry Akst, publicada pela Casa Carlos Wehrs, com arranjo de Pixinguinha.


Capa contendo o primeiro (e talvez único) catálogo da editora Salãorchestra, de Mario Braz da Cunha

Ao que tudo indica, Mario era uma pessoa muito querida do meio musical – seu aniversário era sempre lembrado pelo Correio da Manhã, e, como seria de se esperar, recebeu homenagens de seus amigos músicos, como a valsa “Amor sublime”, do grande pianeiro Bequinho (Alberico de Souza), dedicada “Ao amigo Mario Braz da Cunha”, por volta de 1926; e a polca "Amor tem pimenta", de Alfredo Castro, "Dedicada ao bom amigo Mario Braz da Cunha".

Sua ligação com a Casa Carlos Wehrs continuou até 1926, quando houve um desentendimento relacionado aos direitos autorais de um samba-canção (“Por Deus eu juro”, de Dico Pereira da Costa), que Mario e um certo João Morgado teriam exposto à venda, sem permissão para fazê-lo.

Em 26/10/1926 Jornal do Brasil noticiou:


Samba-canção “Por Deus eu juro”, anunciado em um catálogo da Casa Carlos Wehrs.

Em 1925, Mario agora residia na Rua 24 de Maio nº 185, e era referenciado como gravador da Casa Vieira Machado, onde seguiria trabalhando por vários anos. Mario também gravou partituras para a Casa Arthur Napoleão (Sampaio Araújo & Cia.) e realizava edições independentes, custeadas pelos próprios músicos.

Em 1932, temos notícia da família residindo na Ilha do Governador, e dois anos depois na Rua Conde Bomfim nº 260. Curiosamente, o nome de Mario não aparece no famoso Almanak Laemmert, referência máxima para endereços e serviços no Rio de Janeiro até pelo menos 1940; também não encontramos nenhum anúncio seu em jornais.

Na década de 1940, provavelmente entre 1942 e 1946, sua perícia ao produzir chapas com excelente diagramação e acurácia levou-o a exercer um dos trabalhos mais importantes de sua carreira, ao ser contratado por Villa-Lobos para integrar uma equipe de copistas e gravadores responsáveis por gerar cópias de partituras a serem utilizadas pelo Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, do qual Villa-Lobos era diretor. Mario era um dos professores no Curso de Formação de Músicos-Artífices. Este órgão fazia parte da Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA), criada no início do governo Vargas.

Adhemar Nóbrega, ativo colaborador de Villa-Lobos na sua ação de educação musical, e que lhe sucedeu na cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Música, nos dá mais detalhes sobre esta época:

“Villa-Lobos, na qualidade de diretor do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, e sendo autor da mais vasta obra que um compositor já produziu no Brasil, idealizou e pôs em execução a criação de um serviço de reprodução musical – partituras de material de orquestra, além de obras corais, que incluía uma equipe de bons copistas e instalações para reprodução fotostática e heliográfica. (...). No terreno prático, foi a iniciativa mais bem inspirada de Villa-Lobos na direção do Conservatório. Diga-se de passagem que, anos depois, quando esse serviço ainda funcionava bem, e depois quando já claudicava, e depois quando desapareceu, muitos compositores ainda lamentavam o seu desaparecimento. Isso porque, sabem os compositores presentes aqui, caminha para um rápido processo de falência, que já está até melhor do que há alguns anos atrás, a indústria de edição musical no Brasil. Os gravadores do Brasil emigraram para os Estados Unidos. Um deles me pediu para conseguir uma situação no Rio, não muito tempo eu consegui logo, escrevi uma carta, e ele disse “não quero mais não, vou para os Estados Unidos”. Só havia seis na [editora] Ricordi, ele era um dos seis. Isso eu me refiro ao gravador em zinco. A gravação em zinco, a despeito de antiga, continua sendo o processo mais aperfeiçoado de impressão musical, e depois o que mais rende – partindo de uma chapa, o que mais rende, a milhares e milhares de cópias.

Mas Villa-Lobos percebeu, com seu atilamento, com sua grande abertura como compositor, como profissional, que isto teria uma importância enorme. A equipe inicial de copistas, da qual já desapareceram alguns participantes, produzia novos profissionais, preparados em um curso de músico artífice, que o compositor criou depois, e do qual o orador [Adhemar Nóbrega] figurou como modesto professor. Além desses itens, constava ainda desse equipamento gráfico um serviço de gravura em chapa de zinco, processo adicional, a que já me referi, e ainda hoje não superado, e no qual tronava, pontificava, o famoso Mário gravador, cujo nome está no pé da página digamos de 80% da obra de Villa-Lobos, pelo menos da obra editada até 15 anos atrás. Mário foi um sujeito que gravou nas pernas na presença de Caruso, no Palace Hotel. Era um gravador tão excepcional, que poderia ser gravador aqui, em Paris, em Nova York. Ficou aqui toda a vida”.
(texto transcrito a partir do audio da palestra "A política musical de Villa-Lobos", proferida por Adhemar Nóbrega durante a Semana Villa-Lobos, na Universidade de Brasília (UnB), em 1979. Os grifos são nossos)

Também nesta época, foi fundada em dezembro de 1944 a “Cooperativa Editora dos Compositores e Músicos Profissionais Ltda.”, organizada pelo Sindicato dos Músicos, e presidida pelo maestro Eleazar de Carvalho. O objetivo era enviar partes de orquestra gratuitamente para maestros que as solicitassem. Mario participou como suplente do conselho fiscal. A edição de 22/01/1945 do Diário da Noite publicou uma foto que marcou a inauguração desta cooperativa. Para nossa satisfação, Mario está presente na foto (é o 4º de pé, da esquerda para a direita). Embora a foto seja de baixa qualidade, até onde sabemos, esta é a primeira imagem divulgada do Mario gravador.


De pé, da esquerda para a direita: Evaristo Machado, Aldo Taranto, Oscar de Carvalho, Mario Braz da Cunha (Mario gravador) e Esaú de Carvalho; sentados, da esquerda para a direita: Pompeu Nepomuceno, J. Tomaz, Eleazar de Carvalho, Antão Soares e Paulo Silva.


Detalhe da foto: Mario, gravador

Continuando este caminho de alto prestígio, em 23/05/1947, o jornal A Noite noticia que o Tomo VI do Suplemento Musical do Instituto Interamericano de Musicologia de Montevidéu, do qual era diretor o grande musicólogo Francisco Curt Lange, foi dedicado inteiramente à música brasileira, e gravado por ninguém menos que Mario Braz da Cunha. O álbum foi impresso em São Paulo pela Irmãos Vitale, e continha composições de Francisco Braga, Villa-Lobos, Fructuoso Vianna, Jayme Ovalle, Guerra-Peixe, Radamés Gnattali, Lorenzo Fernandez, Vieira Brandão, Paulo Silva, Iberê Lemos, Claudio Santoro, Luiz Cosme, Francisco Mignone, José Siqueira, Camargo Guarnieri, Brasílio Itiberê, Arthur Pereira e Dinorah de Carvalho; ou seja, um apanhado do que a música de concerto brasileira tinha de melhor a oferecer. Infelizmente ainda não encontramos uma cópia deste precioso álbum.

Em 1956, Mario e Guiomar comemoraram bodas de ouro, e, em 12/03/1960, foi celebrada uma missa em sua homenagem, indicando que provavelmente faleceu nos dias anteriores, aos 78 anos.

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Ainda é difícil quantificar a produção de Mário gravador. Em nosso acervo, há algumas centenas de partituras gravadas por ele. Mas o número total de partituras que produziu provavelmente está na casa dos milhares.

As músicas que ele grafou são uma rica amostra da produção brasileira tanto de concerto como popular, das décadas de 1920 e 1930. Em geral são peças para piano solo, mas também piano e canto, arranjos para pequena orquestra, e até coro.

A seguinte listagem de compositores, presentes nas partituras que encontramos, dá uma ideia deste universo de músicas, mostrando que Mário foi um personagem de imensa importância para a música brasileira, e que merece ser estudado em maior profundidade:

Alberto Nepomuceno; Aloysio de Castro; Assis Republicano; Barrozo Netto; Carlos Gomes; Ernani Braga; Ernesto Nazareth (das 162 edições publicadas durante a vida de Nazareth, apenas 4 estão assinadas, todas por “Mario, gravador”: Improviso, Jangadeiro, Mandinga; e Tudo sobe); Fructuoso Vianna; Heitor Villa-Lobos; Hekel Tavares; Henrique Oswald; João Nunes; João Octaviano; Luciano Gallet; Marcello Tupynambá.


Cabeçalho e final da partitura do Prelúdio das Bachianas Brasileiras No.4, de Heitor Villa-Lobos, para piano solo, grafada por Mario Braz da Cunha (Casa Arthur Napoleão, nº de chapa 1060, copyright de 1941).

Também encontramos muitos sambas de autores como Bide e Francisco Alves; Pedro Cabral e Lamartine Babo; Joubert de Carvalho e Gastão Penalva; Freire Junior; e Pixinguinha; marchas carnavalescas de Oswaldo Cardoso de Menezes; e José Luiz de Moraes (Caninha), além de músicas de Cândido das Neves; Luiz Nunes Sampaio (Careca) e Sivan (Castello Netto); e outros gêneros em voga, como tangos argentinos e valsas.

Cabeçalho e final da partitura da canção regional Jura de cabocla, de Cadido das Neves (Indio), grafada por Mario Braz da Cunha. (Casa Vieira Machado nº de chapa F. A. P. 766)

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Durante esta pesquisa, encontramos outros gravadores, em menor número, que também assinaram partituras brasileiras nas décadas de 1920 e 1930. Oferecemos aqui uma breve listagem destes nomes, para que possam servir a pesquisas futuras:

Luiz Kantz (L. Kantz)

Editoras: Carlos Wehrs e Viúva Guerreiro &C., e edições independentes

Citarista e violinista provavelmente austríaco, colega de Carlos Tyll, primeiro professor de Avena de Castro, que popularizaria a cítara alpina, no Brasil, anos mais tarde.

Marçal

Editoras: À Guitarra de Prata (Porfírio Martins); e Casa Arthur Napoleão

Luzze

Editora: edições independentes

Curiosamente, encontramos uma partitura de Baptista Siqueira gravada por Mario e Luzze, em um caso raro de trabalho em conjunto em uma mesma chapa.

Heitor

Editoras: Casa Carlos Wehrs