Entrevista com Hercules Gomes

Hercules Gomes é um dos grandes nomes da nova geração do piano brasileiro. Misturando influências do piano popular e erudito, ele tem criado um estilo único, trazendo de volta a rica linguagem dos pianistas populares do início do século XX.

Acompanhe a entrevista que Hercules concedeu ao IPB, em que ele fala sobre o início de sua carreira, suas várias influências, e projetos atuais e futuros!

Alexandre Dias: Hercules, vamos falar sobre o seu início – tem uma foto em que você, ainda criança, está tocando uma guitarra ao lado de seu pai, que segura um violão. Foi através dele que a música entrou na sua vida?

Hercules Gomes: Sim! Meu pai toca violão/guitarra e baixo elétrico de ouvido. Nunca estudou música, mas tem um talento muito grande. Ele sempre tentou me incentivar, desde quando eu era criança. Lembro muito de uma cena: ele chegou com um presente pra mim, uma caixa grande - eu fiquei muito feliz pensando que enfim ganharia meu autorama que tanto sonhava! Quando abri, era um violão da turma da Mônica rs...

Só despertei algum interesse pela música aos 13 anos quando pedi que ele me ensinasse alguns acordes no violão. Começou assim. No mesmo ano, depois de um ensaio dele com uns amigos lá em casa, encontrei um tecladinho que eles usaram no ensaio, um Cassio de 4 oitavas e de teclas minúsculas. Liguei e comecei a tirar umas melodias de ouvido e depois tentar passar pro teclado os acordes que ele havia me ensinado no violão. 


Hercules e seu pai, Paulino Francisco Gomes (por volta de 1990)

AD: Você começou a estudar piano, como autodidata? O que você ouvia nesta época? O que te motivou a ir para o piano/teclado?

HG: Na verdade, o meu primeiro contato com o piano acústico foi já em um conservatório, quando eu já tinha 17 anos. Primeiro piano só fui ter aos 21, quando eu já estava na faculdade. Na infância e início da adolescência em casa, eu ouvi o que meu pai costumava ouvir: música sertaneja, jovem guarda, etc... Lembro de gostar dos grandes hits internacionais da década de 80 e também do Roupa Nova quando eu era criança rs... Sobre a motivação, foi uma coisa meio natural... Eu diria até mesmo acaso, depois de contar essa história do tecladinho. Aos que não acreditam em acaso, poderíamos chamar de destino, enfim...

AD: Durante a adolescência, você tocou profissionalmente teclado em bandas do cenário musical capixaba. Como foi esta época? Vocês tocavam músicas autorais?

HG: Sim, toquei bastante. Na época em que comecei a me interessar por música, meu pai tocava na igreja. Uma comunidade católica chamada Imaculada Conceição. Ele me levou pra tocar lá também. Isso considero muito importante, porque pude desenvolver bastante a percepção harmônica a partir daí. Depois, com uns 16 anos e já profissionalmente, comecei a tocar teclado em uma banda de pagode chamada CurtSamba (hoje Pele Morena). Toquei também em uma banda chamada Flash Back, que tocava músicas da década de 60/70. Isso além dos freelances que eu fazia. Nenhuma das bandas tocava repertório autoral, era só cover. O que também foi importante pra eu desenvolver percepção, pois tinha que tirar muitas músicas de ouvido.

 
Hercules Gomes tocando teclado na comunidade católica Imaculada Conceição (1996)

AD: Você estudou durante um período na Escola de Música do Espírito Santo (atual Faculdade de Música do Espírito Santo - FAMES). Como foi a experiência lá? Que tipo de repertório estudava?

HG: Sim, primeiro foi no Conservatório de Música Vila Velha, por um período de uns 6 ou 8 meses acho... Depois estudei por uns 2 meses na Escola de Música do Espírito Santo, enquanto cursava o pré-vestibular, até entrar na Unicamp.

A experiência foi muito importante porque foi praticamente o primeiro contato formal que tive com teoria musical e com o piano acústico. Eu não tinha dinheiro pra comprar um piano, então eu tinha aula de piano em um dia, teoria em outro e na sexta-feira eu ia até a escola pra estudar no piano, porque em casa eu estudava no teclado (era um workstation Roland XP 80 de 76 telas). Sobre o repertório, lembro muito do Czerny, Bach (minuetos) e Hanon. Certamente muitas coisas que estudei nessa época não me lembro mais o que eram... Mas era esse tipo de repertório.

AD: Em seu site você diz que em 1998, quando tinha 18 anos, conheceu um professor que lhe incentivou a ir para Campinas a cursar graduação em música popular. Quem era este professor?

HG: O Pedro de Alcântara. Ele havia estudado na UNICAMP anos atrás. No Espírito Santo, nessa época, dava pra contar nos dedos os músicos que tocavam jazz. Eram pouquíssimos. A informação não era como hoje em dia. Internet só fui ter o primeiro contato em 1999. O Pedro era um desses músicos que saiu para estudar e voltou pra passar conhecimento. Ele me despertou interesse por muitas coisas que eu não conhecia, e principalmente me incentivou a ir estudar em Campinas.

AD: Você se lembra do que tocou na prova específica para entrar na Unicamp?

HG: Lembro perfeitamente: toquei Wave (Tom Jobim) com uma arranjo que começava em bossa nova e depois entrava um walking bass rs... Isso era na prova prática. Teve também uma leitura à primeira vista. O Gogô colocou uma transcrição simples do Bill Evans. Errei tudo rs...

AD: Lá você estudou piano popular com os professores Gogô e Paulo Braga. Pode nos falar um pouco sobre cada um deles? O que você se lembra das aulas?

HG: Os dois foram muito importantes. O Gogô tinha um estilo mais bossa novista. Excelente professor! Foi muito importante pra me ensinar organizadamente muitas coisas que eu já fazia de ouvido e ao mesmo tempo importante por apresentar de forma didática muitas outras coisas novas. Ele gostava muito das harmonias do Bill Evans, era apaixonado por harmonia. Ao mesmo tempo, tinha um conhecimento incrível sobre música popular brasileira. Conheceu muita gente e viveu momentos importantes da MPB. Tinha inúmeras histórias pra contar.

O Paulo Braga tinha um estilo mais livre, mais de improvisação e muito rítmico também. Eu me identificava muito com isso. Me apresentou muitas coisas novas, especialmente do instrumental brasileiro. Trabalhava muito incentivando a criatividade e também no uso do piano na música brasileira. Pra mim foi muito importante!

AD: Depois Gogô lhe sugeriu que você procurasse um professor de piano erudito, e você passou a estudar com Silvio Baroni. Pode nos explicar em detalhe o tipo de técnica que trabalhou com ele?

HG: O Silvio é um grande professor e um grande ser humano. Ele ensina uma técnica muito peculiar de piano que foi criada pelo Pietro Maranca. Na verdade, é uma junção de 3 técnicas: Pietro, em diferentes épocas, teve aulas com Arturo Benedetti Michelangeli, Maria Curcio e Peter Feuchtwanger. Pegou o melhor da técnica de cada um deles e formatou uma técnica própria. É muito difícil explicar em palavras, mas é basicamente uma técnica que se baseia na articulação e na leveza, não exige esforço algum. Cada dedo tem seu ângulo pra tocar na tecla, o pulso tem a articulação certa para cada movimento, é tudo medido. É um pouco parecido com a forma que a Martha Argerich toca. Martha e Pietro estudaram na mesma época com Michelangeli. Lembro muito bem da primeira aula. Silvio me disse que depois que a gente aprendesse essa forma de tocar nunca mais conseguiríamos tocar de outra forma. E era verdade! É uma técnica que funciona muito bem, pra qualquer pianista. Obviamente precisa se estudar muito para aprender, mas depois que aprende não sai mais da mão, nem se quiser rs...

AD: Por três anos você parou de tocar piano popular, e passou a tocar exclusivamente piano erudito, chegando a tocar a Sonata No.2 de Chopin, o Estudo transcendental No.8 de Liszt, e a Toccata de Camargo Guarnieri. Como você se sentia tocando este tipo de repertório? Há alguma chance de vermos Hercules Gomes voltando a estas peças, e gravando, quem sabe, os 12 Estudos transcendentais de Liszt, ou os Ponteios de Camargo Guarnieri?

HG: Adoraria voltar, adoraria mesmo! Nessa época eu queria tocar esse repertório, não queria outra coisa. Mas infelizmente é pouco provável que eu volte.... Teria que ser em algum tipo de projeto muito especial. Hoje em dia não sobra tempo pra estudar muitas coisas que eu gostaria. Acabo tendo que direcionar muito o que estudo em função do que toco nos shows, em função dos projetos que faço. E geralmente o repertório que estudo tem mais a ver com a música que faço hoje. Mas me identifico muito e me inspiro em compositores como Radamés Gnattali e Nikolai Kapustin, são compositores que eu gravaria discos inteiros, integrais. 

AD: A não-efetivação de Silvio como professor de piano na mesma universidade gerou grande protesto entre os alunos, e isto representou uma ruptura em sua vida. Pode nos contar um pouco sobre este momento? Houve risco de você abandonar a música?

HG: Sim, foi muito difícil pra todos os alunos. A gente vinha desenvolvendo o trabalho com ele já fazia alguns anos e todos esperavam que ele fosse efetivado. Quando não aconteceu, foi muito ruim, pra todo mundo, principalmente pra ele. Muitos alunos desistiram da carreira do piano depois de se formarem inclusive. Eu acabei voltando a tocar música popular. Risco de abandonar a música não houve, porque eu não sei fazer outra coisa rs... mas foi bastante difícil. Passei uma longa fase desmotivado. Tocava trabalhando em bandas, casamentos, dava aulas, etc... Mas não tinha motivação para estudar piano tanto quanto antes. Lembro que o aeromodelismo foi um refúgio importante nessa época, pilotei bastante. Os grupos de música instrumental também foram importantes. Com os grupos voltei a tocar o que eu tocava antes de estudar clássico, e desenvolver um pouco mais.

AD: Você tocou e gravou com os grupos Amanajé e Pano pra Manga. Pode nos falar um pouco sobre o tipo de trabalho desenvolvido com eles?

HG: Sim, esses foram os dois principais grupos de música instrumental dos quais participei. Apesar da diferença estética dos dois grupos, ambos tinham a música popular brasileira como base das composições e arranjos. O Pano pra Manga foi um quarteto que na época da gravação do primeiro (e único) disco tinha como integrantes Mauricio Lima (guitarra), Gabriel Sampaio (baixo elétrico), Tiago Domingues (bateria) e eu (piano). Foi formado na época da faculdade, entrei no grupo em 2000 e tocamos até 2002 mais ou menos, porém tivemos uma pausa grande e só voltamos em 2007 quando conseguimos patrocínio para gravar o disco. O Amanajé era inicialmente um quinteto com Thiago Righi (guitarra), Raphael Ferreira (sax), Rodrigo Pinheiro (baixo elétrico), Tiago Domingues (bateria) e eu (piano). Com essa formação, gravamos em 2004 o primeiro disco (Amanajé). Depois o grupo virou quarteto com Raphael Ferreira (sax), Rodrigo Pinheiro (baixo elétrico), Lucas Casacio (bateria) e eu (piano). Era um grupo bastante influenciado pela linha do Hermeto Pascoal. Trabalhávamos muito composição e improvisação. Foi uma época muito importante em que pude conhecer e desenvolver muito algumas características que utilizo na música que faço hoje, principalmente na composição.

AD: Em 2012, você ficou em 1º lugar no 12º Prêmio Nabor Pires de Camargo. Como foi a preparação para o concurso, e o que este prêmio representou para sua carreira?

HG: O Prêmio Nabor é um concurso para instrumentistas tradicionalmente de choro. Ter vencido foi muito importante porque isso foi um impulso pra mim comigo mesmo. A partir dali percebi que muitas pessoas se identificavam com aquele tipo de música que eu tocava, e isso me motivou a gravar meu primeiro disco. Sobre a preparação, eu já tinha um arranjo feito para piano solo que era Corrupião (Edu Lobo) e escolhi uma música do Nabor (Vá Carregar Piano). Foram essas as duas músicas que toquei. É um dos poucos prêmios que existem aqui no Brasil exclusivo para instrumentistas de música popular. Infelizmente não existem mais prêmios da proporção do Prêmio Visa, por exemplo, que revelou tantos fantásticos instrumentistas como Hamilton de Holanda, André Mehmari, Yamandú Costa e por aí vai... Imagine só se um prêmio dessa magnitude continuasse por todos esses anos? Quantas outros instrumentistas brasileiros não teriam sido revelados?

AD: Em 2013, você lançou o excelente CD Pianismo com músicas suas, e de outros compositores. Como foi a escolha do repertório, e como se deu a produção do disco?

HG: Pianismo foi meu primeiro disco solo, tanto no sentido de ser piano solo quanto no sentido de ser o primeiro trabalho com meu nome. Era um sonho que eu tinha há muitos anos, gravar um disco nesse formato. Eu decidi só gravar compositores que eu gosto muito, e também composições minhas que gosto muito. Então foi por isso que escolhi Ernesto Nazareth, Radamés Gnattali, Edu Lobo, etc... Alguns arranjos eu já tocava há algum tempo, outros fiz especialmente para gravar no disco, como é o caso da Viva o Rio de Janeiro (Hermeto), Odeon. Com as composições foi parecido: algumas eu já tocava, porém em outras formações, então essas adaptei pro piano solo, como é o caso da Allegro em 3 e Platônica. Outras compus especialmente para o disco, Toada, Helena...

Foi um disco que produzi sozinho, uma correria rs... mas é bom porque a tendência hoje em dia, pelo menos pra gente que é pequeno, é a cena independente. Selos, gravadoras, etc, são cada vez mais raros, infelizmente, por um lado... Então ter corrido atrás de tudo sozinho quanto à produção me fez aprender muito. Não só produção como pós-produção. Acabo sendo meu empresário, produtor, arranjador, às vezes até câmera man rs... a divulgação desse trabalho foi praticamente toda feita pela internet. E fico muito feliz que isso seja possível hoje em dia! Torna a coisa um pouco mais democrática.


Capa do CD Pianismo, de Hercules Gomes (2013)

AD: Após a conquista do 1º Prêmio MIMO Instrumental, que ampliou sua visibilidade em nível nacional, você gravou em 2015 o Concerto Carioca No.2 de Radamés Gnattali, com a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, sob regência de Victor Hugo Toro. Primeiro gostaria que nos falasse sobre sua ligação com a obra de Radamés Gnattali, e depois nos contasse como foi o processo de ensaio e gravação com uma orquestra.

HG: O primeiro contato com a música do Radamés foi na época da faculdade. Eu tocava no grupo Quatro a Zero e Radamés sempre foi uma inspiração pro grupo. Lembro também que na mesma época toquei a sonatina pra piano e flauta também dele. Então esses dois contatos fizeram me despertar muito interesse pela música do Radamés, pois eu via que era uma música ao mesmo tempo popular e refinada. Eu não fazia ideia do que iria conhecer anos depois. Foi quando li o livro Choro do Quintal ao Municipal, do Henrique Cazes, que comecei a me entender e conhecer ainda mais o Radamés. O título desse livro é exatamente por causa de uma música do Radamés, o Concerto nº 3 - Seresteiro. Inicialmente foi composto para piano e orquestra e na década de 80, Radamés fez uma adaptação adicionando a Camerata Carioca. A Camerata em sua formação era um regional de choro e na visão do Henrique Cazes esse concerto que fizeram na década de 80, piano, regional e orquestra sinfônica, representou o choro colocado em pé de igualdade com a música de concerto pela primeira vez. Antes, vários artistas de choro já haviam se apresentado no Teatro Municipal, porém tocando apenas choro. Nesse concerto, o choro foi unido com grande propriedade à música de concerto. E isso que me fascina no Radamés. Não é um compositor que fica em cima do muro com erudito e popular. É um compositor que faz muito bem as duas coisas, pois viveu as duas coisas. E ao mesmo tempo é um compositor que consegue como ninguém unir as duas coisas com incomparável propriedade, criando uma estética única na música.

É o caso dos Concertos Cariocas. Esse projeto que participei foi um projeto da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas (OSMC) junto com meus amigos do Quatro a Zero. Eles iriam gravar o integral dos Concertos Cariocas com a OSMC. São 3, mas havia 2 pianistas, e eles precisavam de mais um pra dar conta das peças, pois o prazo era muito curto. Foi aí que me convidaram. O Concerto Carioca nº 2 Radamés dedicou ao Tamba Trio. Por isso é um concerto para piano, baixo acústico e bateria solistas com orquestra sinfônica. Não é um arranjo que a orquestra acompanha o trio, como se houve em tantas gravações de trios de jazz e samba-jazz. É realmente um concerto em que o trio é solista, todo escrito pro piano, pro baixo e pra bateria. Quando é pra soar como bossa-nova, Radamés consegue fazer. Quando é pra soar como Tchaikovsky ou como Debussy, ele também consegue nesse concerto. Dominava muitos as duas linguagens.

Foi muito corrido porque tive praticamente 2 meses e meio para aprender e gravar o Concerto. Sempre quis tocar com orquestra, mas jamais imaginei que a primeira experiência seria já em estúdio, e ainda tocando Radamés. Isso foi como gravar um disco meu, considero a realização de um sonho! Em 2016, lançamos o disco e aí tocamos o Concerto nº 2 com a OSMC. E o disco está disponível para download gratuito no site da OSMC: www.osmc.com.br

AD: Em setembro de 2016, você entrou para o seleto grupo de artistas Yamaha, um grande reconhecimento. O que isso mudará em sua carreira? Há planos para desenvolver projetos com a Yamaha?

HG: Faz muito tempo que gosto dos pianos Yamaha, muito antes de ser endorsee da marca. Quem sempre me apoiou muito foi o pessoal da A Loja de Pianos (representantes da Yamaha). Depois que gravei meu primeiro disco com um Yamaha CFX que era deles, eles passaram a apostar e apoiar bastante o meu trabalho. A partir dessa amizade, surgiu o convite para entrar como endorsee da Yamaha. Isso pra mim tem sido muito importante pois a marca me apoia muito sempre que preciso, principalmente nos eventos mais importantes em que preciso de excelentes pianos.

Os pianos da Yamaha são os que melhor respondem ao meu jeito de tocar. São muito bem equilibrados tanto mecânica quanto sonoramente. Mecanismo pra mim é muito importante, influi diretamente no meu jeito de tocar. Exploro muito ritmo, preciso de velocidade e precisão no mecanismo. Sinto que os Yamaha respondem muito bem ao que o pianista é. Eles também têm uma precisão e uma durabilidade excepcionais. Sempre que vou tocar em Yamaha fico tranquilo, vou fazer o show despreocupado.

AD: Você costuma reverenciar (com razão) o piano CFX da Yamaha. Pode nos falar um pouco sobre as características dele?

HG: Quando se chega a um nível de excelência muito grande na construção de um piano, acredito que aí sim a escolha do instrumento pode ser atribuída ao gosto do pianista. Não dá pra dizer que uma marca é melhor que outra, mas sim que é melhor para a forma com que cada pianista toca. No caso do CFX, confesso que nunca toquei em um modelo cauda inteira tão bem equilibrado. Qualidade sonora, mecânica, potência, precisão, enfim... é o piano ideal pro jeito que toco. Sempre que vou fazer gravações ou concertos que necessitam de um piano de verdade escolho por ele. É incrível!


Hercules Gomes interpretando seu arranjo de Odeon, de Ernesto Nazareth, em um Yamaha CFX (2013)

AD: Vários dos vídeos que você grava são filmados nA Loja de Pianos, em São Paulo. Pode nos falar um pouco sobre sua ligação com eles?   

HG: São uma verdadeira família pra mim! Depois que gravei meu primeiro disco com um piano que era deles, eles passaram a apostar e apoiar muito o meu trabalho. Isso foi e até hoje tem sido muito importante! Eles têm um showroom enorme de pianos. Têm uma cabeça muito aberta também. Isso é muito bom porque nós, artistas independentes, precisamos desse tipo de coisa. Sou e sempre serei muito grato a eles! 


Hercules Gomes interpretando seu arranjo da música "De frente pro crime", de João Bosco e Aldir Blanc, nA Loja de Pianos (SP) (2017)

AD: Vamos falar sobre mão esquerda (risos). Você é um pianista que faz bastante uso da mão esquerda em seus arranjos. Nós já conversamos algumas vezes sobre como os grandes “pianeiros” do passado, como Tia Amélia, Maestro Gaó e Carolina Cardoso de Menezes faziam um uso pleno do piano, mas em algum momento do século XX isto parece ter se perdido. Qual a sua opinião sobre este tema?

HG: É... na verdade atribuo isso muito mais a uma questão estilística do que de limitação técnica de pianistas. A partir da década 40, com o beebop principalmente, pianistas americanos, como Bud Powell, já faziam menos stride piano com aqueles grandes saltos na mão esquerda e já usavam mais acordes de apoio, tornando a mão esquerda mais econômica. O estilo exigia isso. E isso a partir da bossa nova principalmente começou a ser refletido aqui no Brasil. O que eu acho uma pena na verdade é que haja poucos seguidores do estilo dos pianeiros brasileiros (Tia Amélia, Radamés, Carolina Cardoso, Gaó) que eram grandes pianistas! Hoje são pouquíssimos conhecidos infelizmente. Acho que isso se deve principalmente às partituras, que são raras, e às gravações, que não foram relançadas em CD e muito menos em formato digital. Esses pianistas tinham uma ligação muito forte com o choro. Tocavam muito bem e gravaram bastante esse repertório, essa linguagem. É uma linguagem riquíssima pro piano brasileiro. Acho que o Laércio de Freitas foi um pianista que herdou bastante dessa linguagem. É preciso que mais pianistas toquem choro!

AD: Quais são seus pianistas favoritos? Pode nos dizer algumas gravações que você tem como referência?

HG: São muitos! E depende também um pouco da época rs... Lembro que na adolescência gostava muito do César Camargo Mariano. Um disco que foi uma referência grande pra mim foi o Solo Brasileiro. Eu tirava várias músicas desse disco de ouvido. Um pouco depois, ouvia muito o Egberto Gismonti. O discos Alma e Sanfona eu adorava, tirava muitas coisas de ouvido também. Depois ouvi muito Hermeto, pra mim o maior improvisador que o Brasil já teve! Linguagem impressionante no piano, principalmente quando toca música nordestina. Mais pra frente, pianistas mais da minha geração como o André Marques, o Irio Junior, o [André] Mehmari, foram importantes influências também. Mais recentemente descobri coisas incríveis do Laércio de Freitas. Gosto muito da forma que ele toca e compõe no piano. Se fosse falar nos internacionais. Tive uma fase que gostava muito do Gonzalo Rubalcaba. Eu ficava fascinado ouvindo os solos dele. [Chick ] Corea, [Herbie] Hancock, [Oscar] Peterson, Kenny Kirkland, Makoto Ozone, Craig Taborn, para citar alguns que completariam uma lista resumida de pianistas de jazz.

Se fosse falar no clássico, pianistas como o [Vladimir] Horowitz, a Martha Argerich, o George Cziffra, sempre foram os que mais ouvi. Gosto muito desse estilo vivo e vibrante de tocar piano. Admiro muito pianistas brasileiros como o Fábio Martino, que conseguem seguir carreira internacional com o piano clássico hoje em dia, admiro muito mesmo! É heroico nos tempos atuais!

Mas enfim respondendo: hoje em dia os que mais tenho escutado são Radamés Gnattali, Laércio de Freitas e Nikolai Kapustin.

AD: Você já atuou como professor assistente no curso de música popular da Unicamp, professor no Conservatório Souza Lima, e dá aulas particulares e masterclasses em festivais. Pode nos falar como tem sido sua experiência de docente? O que você gosta de trabalhar com seus alunos?

HG: Eu adoro ensinar, embora muitas vezes falte tempo para me dedicar mais a alunos. Acabo tendo alguns poucos alunos regulares e outros que me procuram para fazer uma tarde de aula por exemplo. Gosto muito de dar workshops, oficinas, palestras, porque são momentos em que tenho a oportunidade de falar sobre o que faço no piano, sobre o que gosto. E são momentos em que aparecem pianistas muito interessados em aprender sobre o que a gente faz! 

AD: Você é uma espécie de discípulo do pianista Laércio de Freitas, pois é um grande admirador e continuador de seu estilo. Pode nos falar um pouco sobre seu estilo pianístico e o quanto ele lhe influenciou? 

HG: Lembro que a primeira vez que ouvi o Laércio tocar foi em um festival no Conservatório de Tatuí. Lembro de poucas vezes ter ouvido um pianista ao vivo e ter pensado "nunca vi ninguém fazer isso". E o que mais me chamava a atenção era a forma que ele tocava choro. Um dos poucos pianistas brasileiros mais contemporâneos que se dedicaram ao choro. Laércio é uma continuação do piano brasileiro que em cada época tem inúmeros expoentes, mas eu citaria principalmente Ernesto Nazareth, Radamés Gnattali e Laércio de Freitas. Radamés conheceu Nazareth, aprendeu tocando a obra de Nazareth. Laércio conheceu e conviveu com Radamés, aprendeu tocando a obra de Radamés,tocando com Radamés. Por isso afirmo que a gente tem essa linha direta desse estilo de se tocar piano. Sou apaixonado! 

Eu ouvia algumas gravações do Laércio solo e acompanhando o Altamiro Carrilho, o Paulo Moura e ficava pensando de onde ele tirava aquela ginga toda. Até que um dia me encontrei com ele e perguntei. A resposta dele foi: "nem sempre a resposta está em seu instrumento" rs... e é verdade! Quando não se tem referências diretas no seu instrumento tem que se ir buscar na fonte. Então para fazer as levadas que imitavam o cavaquinho ele ouve o regional de choro. Para frasear as melodias na linguagem do choro, ele ouve o Jacob do Bandolim e Pixinguinha, por exemplo. Depois disso comecei a entender melhor muitas coisas no estilo ele. Obviamente acabo trazendo muito disso pra meu jeito de tocar. 


Hercules Gomes e Laércio de Freitas

AD: Seu repertório tem abordado uma ampla gama de compositores brasileiros, que vão desde os pouco conhecidos Tia Amélia, Eduardo Souto e Marcello Tupynambá até Radamés Gnattali, Laércio de Freitas e Hermeto Pascoal. Diante desses vários estilos que tem trabalhado (que perpassam mais de um século), o que você tem aprendido sobre o piano brasileiro?

HG: Tenho aprendido que é muito mais rico do que sempre pensei, e que principalmente os pianistas menos conhecidos hoje em dia precisam de alguma forma serem lembrados. Sou muito feliz de poder tocar o que gosto e ter algum espaço para isso e pessoas que gostam disso que faço! 

AD: Quais são seus planos futuros? Se recebesse um patrocínio milionário, que projeto dos sonhos gostaria de ver realizado?

HG: Sobre os planos reais (rs) eu pretendo gravar um disco exatamente com o repertório desses pianistas menos lembrados hoje em dia, os pianeiros como a Tia Amélia, o Radamés, Gaó, Carolina Cardoso [de Menezes], Bené Nunes, etc... É um sonho atual!

Também um disco com meus arranjos e transcrições de músicas de Ernesto Nazareth, e um disco do meu duo com o flautista Rodrigo Y Castro são próximos projetos.

Queira muito gravar meu trio também com o Amoy Ribas (percussão) e com o Rafael Abdalla (baixo). Como tudo depende de dinheiro e tempo, tenho que ir aos poucos... 

Sobre sonhos que dependeriam dos milhões (rs) eu gostaria muito de fazer um projeto grande com orquestras populares brasileiras como a Spok Frevo, a Rumpilez, um grupo tradicional de maracatu como Nação Leão Coroado ou Estrela Brilhante. Concertos para piano e orquestra populares brasileiras! Com 1 milhão daria pra fazer tudo :)


Hercules Gomes solando o Concerto Carioca No.2, de Radamés Gnattali, juntamente com Danilo Penteado (contrabaixo), Lucas Casacio (bateria), e a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas (OSMC) sob regência de Victor Hugo Toro (2016). Assista aqui ao vídeo completo.